"Asas no exílio dum corpo" Natália Correia


“Ó subalimentados do sonho, a poesia é para comer!” assim gritava Natália Correia a quem a quisesse ouvir.

Nascida na ilha de São Miguel, Açores, a 13 de Setembro de 1923, Natália foi uma das fascinantes e intemporais Mulheres do século XX.

Poetisa e deputada, teve as suas principais intervenções políticas ao nível da cultura e do património, na defesa dos direitos humanos e dos direitos das mulheres.
Como escritora não se prendeu a nenhum estilo, apesar de ter como forte influência o surrealismo, estendeu a sua obra a variados géneros, desde a poesia ao romance, teatro e ensaio.

Ouvir Natália a recitar o poema "Autogénese" de sua autoria:


Apelou sempre à literatura como forma de intervenção na sociedade, tendo tido um papel activo na oposição ao regime do Estado Novo.
A sua personalidade forte e polémica, livre de convenções sociais, reflecte-se claramente na sua escrita.

Polémicas intervenções parlamentares sempre caracterizaram a deputada, entre as quais num debate sobre o aborto, em 1982, a réplica satírica que fez a um deputado do CDS, João Morgado, que afirmava “O acto sexual é para ter filhos”. Aqui fica a resposta de Natália Correia - em poema, publicado depois pelo Diário de Lisboa em 5 de Abril desse ano, que fez rir todas as bancadas parlamentares, sem excepção, tendo os trabalhos parlamentares sido interrompidos por isso:

Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
de cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -
uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.

Sacerdotisa do Amor, Natália Correia, para quem o valor das palavras na poesia é o de nos conduzirem ao ponto onde nos esquecemos delas, e o ponto onde nos esquecemos delas é onde nunca mais se pode ter repouso, pode dizer-se, andou de maluqueira em maluqueira (palavra esta que lhe era querida).





A DEFESA DO POETA

Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim

Sou em código o azul de todos
(curtido coiro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs na ordem ?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem ?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho !
a poesia é para comer.

Natália Correia

Ouvir o poema recitado pela autora:



E se a poesia é para comer, sirvamo-nos então da sua Arte!

2 comentários:

Pagu F disse...

Grata pela oportunidade de conhecer Natália Correia!!! Achei-a fantástica! Parabéééééns!!!

Pagu F disse...

Grata pela oportunidade de conhecer essa mulher fantástica!!! Amei sua poesia, sua força, seu magnetismo!
Parabéééns Catarina!!!

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